sexta-feira, 23 de julho de 2010

Le Roy vs. Berthoud

Por Igor de Lacerda e Schütz,
Novembro de 2007

As últimas décadas precedentes à Era de Ouro da Cronometria (1800-1900) foram abundantes em descobertas e desenvolvimentos que possibilitaram o homem medir o tempo com precisão. Além disso, foram abundantes também em rixas e controvérsias que até hoje são motivos de debate entre os amantes da relojoaria.

Famosíssimas são as disputas entre John Harrison e a Comissão da Longitude e também a polêmica envolvendo John Arnold e Thomas Earnshaw, porém, menos comentada, talvez porque o envolvimento dos franceses na cronometria seja menos relevante que dos ingleses, mas nem por isso com entreveros menos interessantes, é a refrega entre Pierre Le Roy e Ferdinand Berthoud.

Pierre Le Roy Pierre Le Roy (1717-1785), nascido em Paris, filho do célebre relojoeiro Julien Le Roy, foi um dos pioneiros da cronometria na França, ao lado do seu rival Ferdinand Berthoud. Bem nascido, foi educado na profissão de relojoeiro desde cedo, portanto tinha os princípios da cronometria bem arraigados em sua mente.

O primeiro passo de Le Roy na direção de um instrumento de medição de tempo mais preciso foi contornar a falha mais significativa encontrada no escapamento cilindro – até então o escapamento mais preciso utilizado em relógios portáteis – a fricção entre a roda de escape e o eixo do balanço.

Como maravilhosamente explicado por Flávio Maia em seu artigo O escapamento de cronômetro, e peço aqui a devida licença para reproduzi-lo:

Escapamento cilíndro (clique para ver em funcionamento) “O escapamento de cilindro (figura a esquerda), assim como o escapamento de vareta, é conhecido como um modelo "de fricção". A explicação é simples: um escapamento é considerado "de fricção" quando o seu órgão regulador – o balanço – está em permanente contato com a roda de escape.

As deficiências dos escapamentos "de fricção" são claras. Como a roda de escape está em permanente contato com o balanço enquanto ele gira, seu movimento não é totalmente estável em virtude do atrito entre as partes do sistema. Ademais, o escapamento necessita de lubrificação intensa entre o cilindro e a roda de escape. Com a deterioração do lubrificante, o desempenho do relógio tende a piorar cada vez mais.”

A solução planejada por Le Roy foi separar o órgão regulador, isto é, o balanço, do contato constante com a roda de escape, este ocorrendo apenas num breve período de seu giro. Assim, em 1748 foi criado o primeiro escapamento destacado (“detached escapement”).

Não satisfeito com a performance obtida em seus primeiros desenhos, apenas em 1766 Pierre Le Roy alcançou um modelo que julgava aceitável. Em 5 de agosto deste ano, Le Roy apresentou ao rei Luis XV seu revolucionário relógio, conhecido apenas como “A” (logo em seguida construiria uma réplica, denominada “S”).

Cronomêtro A ou S de Pierre Le Roy

Este modelo contava com, além de um escapamento destacado aperfeiçoado, compensação de temperatura incorporada na roda do balanço, por meio de dois tubos vítreos, tais quais os de um termômetro, recheados com álcool e mercúrio, ao invés de por meio de uma tira bimetálica ligada a mola do balanço; e também um balanço isócrono[i], por meio de duas molas espirais planas. Ele descobriu que, para qualquer mola espiral, se seu comprimento for alterado pelo uso de pesos próximos ou então distantes da sua ponta externa, a mola seria isócrona, ao menos para determinado arco de rotação.

Detalhe do escapamento

Todos os três principais elementos formadores de um cronômetro moderno, quais sejam, um escapamento destacado, compensação incorporada na roda do balanço e um oscilador isócrono são encontrados no relógio de Pierre Le Roy, portanto, os modelos A e S são os verdadeiros precursores dos cronômetros marítimos, muito mais que o H4 ou qualquer outro relógio produzido antes!

Nas palavras do eminente historiador e relojoeiro Rupert T. Gould[ii]:

“Acompanhando a máquina seguia um memorando descrevendo, num estilo muito lúcido, os princípios de sua construção e os cálculos em que suas proporções se baseiam. Pelo conjunto de evidências de máquina e memorando, eu considero Le Roy como o maior gênio relojoeiro que jamais viveu.”

Uma pena para Pierre Le Roy que o rei e seus conselheiros eram incapazes de julgar ou apreciar todos os méritos da sua maravilhosa criação, e é aí onde se encontra seu maior defeito: ele não sabia propagandear seus inventos. Exatamente o oposto de seu rival, Ferdinand Berthoud, que manejava seus relacionamentos como ninguém.

Ferdinand Berthoud Berthoud (1727-1807), nascido no vilarejo de Plancemont, na região suíça de Jura, recebeu seu treinamento inicial como relojoeiro de seu irmão mais velho, Jean-Henri, e em 1745 foi em busca de fama e fortuna em Paris.

Lá, após um começo muito difícil, finalmente foi capaz de obter a licença para exercer a profissão de relojoeiro por meio de um decreto real, após introduzir uma nova e simplificada forma de cálculo para uso em relógios na Academia Real de Ciências. Através da influência de diversos membros poderosos da Academia, Berthoud conseguiu a tão desejada liberdade para exercer o ofício. Pouco após, ele virou sua atenção para um dos maiores problemas daquele tempo: uma forma de se obter a longitude por meio de um cronômetro.

Berthoud obteve uma boa reputação inicial no campo da cronometria marítima ao fazer uma grande e impressionante máquina, seu Horloge Marine Nº 1. Completo em 1761, a princípio ela não deu bons resultados, porém demorou-se até perceberem isto. Ademais, em 1763, ele publicou seu primeiro grande trabalho, um tratado em dois volumes denominado Essai sur l’Horlogerie (“Ensaio sobre a Relojoaria”), exatamente no momento em que a Academia foi convidada a enviar observadores a Londres, a fim de testemunhar o desmonte e explanação do quarto cronômetro de John Harrison, o H4. Com tal propaganda, Berthoud foi a escolha óbvia da Academia, que precisava de alguma pessoa qualificada (leia-se, relojoeiro) para enviar junto com seu representante, Charles Camus.

Horloge Marine nº 1

Horloge Marine nº 2

Ele foi a Londres em duas oportunidades, em 1763 e 1766. Neste tempo, construiu dois cronômetros relativamente mal-sucedidos, baseado em descrições do H4 e suas tecnologias a ele relatadas por um leigo, Jerome Lalande, que dizia ter visto o histórico cronômetro[iii]. De qualquer forma, pela análise de ambos os trabalhos, claramente vê-se que Berthoud não compreendia muito bem os princípios envolvidos na tecnologia. Após, ele começou sua própria série de cronômetros movidos por meio de pesos, os Horloges Marines. O Nº 8 desta série, por pura e grande sorte, já que possuía diversos problemas técnicos, se deram bem em dois importantes testes, em 1768-69 e em 1771-72.

Desta forma, construindo diversos cronômetros em curto espaço de tempo, com as mais variadas tecnologias, mesmo sem entendê-las propriamente, apenas na base da tentativa e erro, e contando com um pouco de sorte e uma boa dose de propaganda sobre seus feitos, Berthoud foi nomeado Relojoeiro Mecanicista do Rei e da Marinha, o título de maior prestígio dentre a classe relojoeira, acompanhado, claro, de uma gorda pensão vitalícia.

Por tudo isso (veja a cronologia dos eventos abaixo), Le Roy ficou decepcionado. Ele, cediço de sua grande capacidade técnica, e pensando ter contribuído em muito por meio da sua grande obra para com seu rei e para com seu país na busca da solução para o maior problema científico até então, foi preterido em nome de um estrangeiro que só sabia copiar soluções alheias!

Para Le Roy, as idas e vindas de Berthoud na escolha de seus escapamentos só demonstravam uma coisa: a grande incompetência deste último e sua falta de princípios cronométricos, isto é, Berthoud falhava nos princípios mais básicos de relojoaria.

O grande estopim para a cólera de Le Roy foi a publicação por Berthoud, em 1773, do ensaio Traité des Horloges Marines (“Tratado sobre os Cronômetros Marítimos”), onde este procurava relatar a história dos cronômetros marítimos sem ao menos mencionar o trabalho de Le Roy. O governo francês mandou imprimir e distribuir dezenas de cópias deste trabalho e ainda aumentou em 50% a pensão de Berthoud. Possesso, Le Roy acusou Berthoud de saber apenas se propagandear e publicar seus próprios méritos, ao passo em que admite uma completa ineptidão nesta área, “já que estava ocupado trabalhando, ao invés de falando”.

A partir de então, até sua morte em 1785, desiludido com a falta de reconhecimento e crédito, Pierre Le Roy abandonou suas pesquisas e desenvolvimentos e foi para o campo, enquanto Ferdinand Berthoud continuou tocando seus negócios e arrumando maneiras de aumentar ainda mais sua pensão anual. Aliás, algo que fez de maneira formidável, visto que foi capaz de manter sua posição através de três regimes totalmente diferentes e um dos períodos mais turbulentos da história francesa.

Le Roy, desde cedo, tinha todas as possibilidades advindas do sucesso de seu pai. Ainda mais, tinha uma mente extraordinária e um conhecimento ímpar das minúcias relojoeiras, que lhe permitiram encontrar da forma radical, e ainda sim lógica, diversas soluções. Porém, infelizmente, era por demais recatado, e não teve tato para procurar o apoio dos ricos e poderosos que poderiam lhe ajudar, ao contrário do rival.

As críticas de Le Roy deixaram sua marca, e, conseqüentemente as gerações seguintes tendem a desabonar o trabalho de Berthoud como uma bobagem insignificante e irrelevante, no entanto, em defesa de Berthoud, vale transcrever aqui uma excelente passagem proferida por David S. Landes em seu livro Revolution in Time[iv]:

“Isto é injusto. Berthoud não era o mecanicista que foi Le Roy. Ele realmente não compreendia os princípios básicos; ele até mesmo pode não ter compreendido seu próprio trabalho. Mas era um artesão soberbo, e tinha a mente aberta (muito aberta?) e, uma vez encontrada a direção certa, ele fez máquinas que trabalharam bem. Ele tinha a tenacidade que Le Roy não possuía, de forma que o curso do desenvolvimento cronométrico na França passou por seus relógios e não pelos de Le Roy. Depois de produzir seu impressionante conjunto de peças experimentais, todas elas desapontadoras, Berthoud acertou na loteria com seu Nº 9 de 1771, que começou com um escapamento de cilindro em rubi, mas terminou após três alterações com um escapamento de detenção pivotado – seu primeiro uso bem sucedido de um escapamento livre (destacado). Este era, como Le Roy apontou, desajeitado, uma máquina desnecessariamente complexa, porém marcou um ponto de virada no trabalho de Berthoud: a partir daí ele mais ou menos manteve-se nos escapamentos de detenção, melhorando-os desde então.”

No fim das contas, de todos os pioneiros da cronometria, é Berthoud quem deixou os melhores e mais claros legados do seu trabalho e dos seus métodos. Nisto ele era incansável e perfeito, cobrindo todos os aspectos. Estima-se que ele tenha publicado aproximadamente 4000 páginas de texto, ilustrado por mais de 120 gravuras. Os desenhos e descrições dos cronômetros são freqüentemente tão completos e detalhados que os mecanismos poderiam ser reconstruídos por eles, corretos em todos seus detalhes essenciais. Todas as suas ferramentas e equipamentos, e muitos de seus relógios, são preservados no Conservatoire des Arts et Métiers (“Conservatório das Artes e Ofícios”), em Paris, aonde formam uma singular e impressionante exposição.

Montre Marine nº 6, por Ferdinand Berthoud

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Cronologia da rivalidade

A disputa entre os dois personagens começou em 1754, de forma diplomática, quando ambos depositaram na Academia Real de Ciências francesa pacotes selados contendo a descrição de suas propostas para cronômetros “de Longitude”. Apenas o mecanismo de Le Roy foi aprovado e construído (1756), porém sem qualquer futuro[v].

Em 1761, Berthoud completa seu primeiro Horloge Marine (“Cronômetro Marítimo”), com muitas características “inspiradas” nas máquinas de Harrison, porém bastante primitivo. E em 1763 publica seu Essai sur l’Horlogerie, que lhe ajudou a construir uma imagem de “expert” em cronômetros marítimos, já que ele continha uma completa descrição do seu Horloge Marine Nº 1. No mesmo ano, como vimos, tal tratado foi conclusivo para que Berthoud fosse selecionado pela Academia para ir a Londres descobrir os segredos do H4, onde não obteve sucesso.

Ainda em 1763, Pierre Le Roy apresenta seu segundo cronômetro marítimo para a Academia, bem como o faz Berthoud, que descartou completamente os princípios de seu cronômetro Nº 1 ao fazer seu Horloge Marine Nº 2, ainda mais baseado nas tecnologias observadas nos mecanismos de Harrison. No mesmo ano, Berthoud finaliza seu Montre Marine Nº 3, muito similar em aparência e tamanho ao H4, porém imensamente mais primitivo.

Montre Marine nº 3

Em 1764, Le Roy apresenta à Academia seu terceiro cronômetro marítimo, que, testado, apresentou resultados inconclusivos. Já em 1765, Berthoud completa seu Horloge Marine Nº 4, que serviria de base para sua série de relógios movidos a peso.

No ano de 1766, Berthoud volta a Londres e novamente não obtém sucesso em analisar o H4, pois Harrison recusava-se a mostrá-lo gratuitamente[vi], porém, bom de papo, consegue que Thomas Mudge, o então encarregado de analisar o H4 para a Comissão da Longitude, lhe explique o mecanismo. Este fato tornou Berthoud muito estimado dentre os influentes de Paris, tanto que no mesmo ano o relojoeiro recebeu ordens diretas do rei Luis XV para que produzisse dois cronômetros; se eles fossem bem sucedidos, Berthoud receberia uma pensão vitalícia e um título prestigioso.

Ainda em 1766, Pierre Le Roy apresenta seus revolucionários cronômetros A e S, já descritos, pelo qual recebe em 1769 um prêmio duplo de 4000 livres para que continue com suas pesquisas e desenvolvimento dos mecanismos, após serem amplamente testados.

Em 1768, Berthoud finalmente apresenta seu Horloge Marine Nº 8, com algumas características já encontradas no trabalho de Le Roy. Ele é testado pela Academia e aprovado, apesar das óbvias falhas conceituais como, entre outras, o uso de pesos ao invés de tambor de corda, escapamento de cilindro, e necessidade de uso de uma tabela para se calcular a compensação em virtude da temperatura. Em 1770, como prometido, Berthoud ganha o direito a pensão e o pomposo título Horloger-Mécanicien da Sa Majesté et de la Marine.

Horloge Marine nº 8 Em 1771, a batalha decisiva: os cronômetros A e S de Le Roy e o Horloge Marine Nº 8 de Berthoud são enviados para teste na fragata La Flora, aonde, pela mais pura sorte de Berthoud, e também azar de Le Roy, alguns acidentes incapacitam as obras deste último e só o cronômetro Nº 8 mantém-se intacto, e ainda por cima mantendo uma boa marcha. Mesmo assim, e ainda que ganhando um prêmio de consolação para que mantivesse suas pesquisas, Le Roy insiste em suas críticas ao relógio do adversário, afirmando que o desenho do modelo é tecnicamente defeituoso, e que a boa marcha obtida no teste não era mais de que um golpe de sorte, que não poderia ser repetido. Berthoud apenas limita-se em afirmar a superioridade de seu Nº 8.

Em 1773, Berthoud publica seu Traité des Horloges Marines, propondo resumir o trabalho realizado na França em torno dos cronômetros “de longitude”, especialmente os seus próprios, entretanto deixando de lado o trabalho de Le Roy. Este respondeu com seu Précis des recherches faites em France depuis l’année 1730 pour la detérmination des longitudes em mer (“Compêndio das pesquisas feitas na Franças depois do ano 1730 para a determinação da longitude no mar”), porém, desencorajado pela falta de reconhecimento e suporte financeiro, ao contrário de Berthoud que ainda ganhou um suplemento de 50% sobre sua pensão, abandonou todas as tentativas de desenvolver seus cronômetros marítimos e mudou-se para o campo.

No ano seguinte, Berthoud e Le Roy ainda debateriam por meio de panfletos, no entanto seria a última vez que bateriam boca publicamente.

Em 1784, Ferdinand Berthoud passa o controle de seus negócios para o sobrinho Louis Berthoud, que já demonstrava ser um relojoeiro muito superior, em todos os aspectos, ao seu tio.

Por fim, em 1785, morre Pierre Le Roy, aos sessenta e sete anos, acabando a grande contenda.


[i] Por isocronismo entenda a oscilação do órgão regulador em intervalos regulares. Um relógio é isócrono quando a oscilação do seu pêndulo, ou então do seu balanço tem a mesma duração independentemente da sua amplitude.

[ii] Tradução livre, conforme Rupert T. Gould, John Harrison an His Timekeepers, 4ª Ed. (Greewich: Museu Marítimo Nacional, 1978), p. 14.

[iii] Paira dúvida sobre este assunto, conforme Boletim da NAWCC, nº 359, de dezembro de 2005, pp. 733-743.

[iv] Tradução livre de David S. Landes, Revolution in time (Massachusetts: Harvard University Press, 2000), p. 179.

[v] Por motivos inexplicados, a proposta de Berthoud permaneceu lacrada até 1976!

[vi] Na verdade, Harrison exigia £4.000 para mostrar o H4, o que dá aproximadamente US$ 3 milhões no dinheiro de hoje.

Bibliografia

Landes, David S. Revolution in time. Cambridge: Harvard University Press, 2000.

Maia, Flavio. “O escapamento de cronômetro.” Relógios Mecânicos. julho de 2007. http://relogiosmecanicos.vilabol.uol.com.br/detencao.htm (acesso em 3 de novembro de 2007).

Randall, Anthony G. The Time Museum Catalogue of Chronometers. Rockford: The Time Museum, 1992.