Por Igor de Lacerda e Schütz,
Fevereiro de 2009
O relógio mecânico mais preciso já construído é o regulador Shortt-Synchronome.
Sua variação diária é de meros +/- 2 milissegundos, ou seja, menos de 1 segundo ao ano!
O Shortt-Synchronome na verdade não é apenas um relógio, e sim um modelo de relógio, que, pela sua espantosa precisão, teve lugar cativo nos maiores laboratórios e observatórios do mundo, até o surgimento dos primeiros relógios quartzo.
Foram fabricadas 100 unidades. A primeira, denominada SH0, foi construída e instalada no Observatório Real de Edimburgo, e hoje se encontra no Museu Real da Escócia.
Patenteado em 30 de setembro de 1921 (Patente britânica nº 187.814) por William Hamilton Shortt, um engenheiro ferroviário inglês, o Shortt-Synchronome foi o primeiro instrumento científico a adotar um verdadeiro “pêndulo livre”.
O pêndulo livre, de acordo com os estudos efetuados por Galileu Galilei, seria a melhor forma de se obter um regulador com absoluta precisão; mas existe um problema: é impossível de se chegar ao pêndulo perfeitamente livre, pois para isto seria necessário desenvolver um mecanismo em que não houvesse perda de energia sob qualquer hipótese, e isto, na prática, é inviável.
Mas se é impossível de se obter um pêndulo livre na prática, como é que Shortt conseguiu?
Bem, na verdade o pêndulo do Shortt-Synchronome não é perfeitamente livre, mas poderíamos dizer que é 99,99% livre, pois ele sofre um pouco de atrito, no entanto a energia é reposta por um engenhoso mecanismo, que lhe dá um breve toque. Assim, convencionou-se denominar um dos pêndulos do Shortt-Synchronome de “pêndulo livre”.
Espera aí! “Um dos pêndulos”? Então tem mais de um?
Sim! A grande sacada de William H. Shortt, que não era relojoeiro, foi unir dois relógios absurdamente precisos, do modelo Synchronome, fabricados pela ‘The Synchronome Co. Ltd.’ (daí o nome “Shortt-Synchronome”): um deles é um relógio normal, com seu pêndulo, trem de engrenagens, caixa, mostrador e ponteiros, e o outro é um modelo reduzido a um mero pêndulo, acrescido do tal mecanismo para lhe dar o toque, e encarcerado num espesso cilindro de cobre, fechado a [quase] vácuo e com pressão e temperatura controlados.
O primeiro é o Relógio “Escravo” (coitado!) e o segundo, como podem deduzir, o Relógio “Mestre” (ou “pêndulo livre”).
O pêndulo livre tem a missão de ser o órgão regulador do relógio, por isto é lacrado e mantido fora de contato de qualquer coisa que possa perturbar sua oscilação. Já o Relógio Escravo, marca o horário e funciona como qualquer outro relógio de pêndulo, porém possui um pequeno e simples mecanismo que o sincroniza com o Relógio Mestre caso fuja do ritmo certo, a chamada peça de “acerto e erro” (“hit-and-miss” do original em inglês).
Agora vem o momento em que os mais puristas torcem o nariz: o funcionamento do Shortt-Synchronome depende parcialmente de eletricidade.
Mas isto não o descaracteriza como sendo um relógio mecânico, afinal, não só o regulador, mas todo o funcionamento do relógio se dá de maneira mecânica, inclusive a ligação e interrupção da corrente elétrica, sendo a eletricidade utilizada somente para alimentar alguns eletromagnetos essenciais ao funcionamento do relógio e para a peça de “acerto e erro”.
Não há circuitos, não há eletrônica, apenas eletromagnetos!
Na verdade, seria perfeitamente possível a elaboração de um relógio que utilizasse os mesmos princípios do Shortt-Synchronome sem o uso de eletricidade, porém sua construção seria tão complicada e frágil (sem contar a constante necessidade de manutenção), que o relógio se tornaria inútil ao seu propósito, que é marcar o tempo de forma precisa e fiável.
Lembrem-se: num relógio regulador, quanto menos se mexer, melhor!
Os relógios reguladores são o ápice do conceito “relógio-ferramenta”. Seu único objetivo é marcar a passagem do tempo com precisão, e para isso, sua construção, seus princípios e sua forma não podem fazer concessões! E o Shortt-Synchronome foi o último e mais perfeito herdeiro de uma linhagem de relógios reguladores mecânicos, antes da introdução da eletrônica nos observatórios por meio dos gigantescos reguladores a quartzo, nos anos 40 do século XX.
Funcionamento do Shortt-Synchronome
O Shortt-Synchronome, como já vimos, consiste de duas partes: o Relógio Mestre (“pêndulo livre”), e o Relógio Escravo.
Partindo-se da premissa que o Relógio Mestre é um regulador perfeito, pois é um pêndulo livre que sofre ínfima interferência, o Relógio Escravo é ajustado de forma que sua marcha permanentemente atrase um pouco.
Ao acumular determinado nível de atraso, o pêndulo do Relógio Escravo entra em contato com a já referida peça de “acerto e erro” – que se trata de uma armação móvel sincronizada por meio de eletromagnetos ao Relógio Mestre – acelerando seu arco de vibração e compensando seu erro.
Para os mais curiosos, segue uma descrição técnica mais elaborada, acompanhada de imagens para facilitar o entendimento:
Do lado esquerdo está o Relógio Mestre em seu cilindro lacrado e à direita o Relógio Escravo, acompanhado da peça de “acerto e erro”.
A cada intervalo de meio minuto, a lâmina A, fixada à engrenagem B, desprende o braço C, que impulsiona o pêndulo escravo por meio de sua palheta. Após percorrer todo seu percurso, o braço C toca o parafuso de contato D da armação E. Com isto, os eletromagnetos F se energizam, atraindo a armação E, e recompondo o braço C ao seu lugar de origem.
Ao mesmo tempo, o eletromagneto G do Relógio Mestre se energiza, liberando o braço H no instante em que o pêndulo livre está no momento mais baixo de sua trajetória para a esquerda (“ponto zero”). O braço H contém em um de seus extremos o rubi J, que entra em contato com um rolamento fixado por um suporte no pêndulo, dando-lhe um pequeno impulso.
No fim do seu percurso, o outro extremo do braço H dá um pequeno peteleco na lingüeta K, que libera o braço M. Em seu percurso, o braço M de um lado restaura o braço H ao seu ponto de partida e de outro faz contato com a armação móvel P, que o reconduz à sua origem pela energização do eletromagneto R.
Quando o eletromagneto R é energizado, os eletromagnetos S e T também são energizados, movimentando os ponteiros do mostrador do Relógio Escravo e atraindo a armação móvel V da peça de “acerto e erro”, respectivamente.
O tempo considerável (entre sete e oito décimos de segundo) existente entre a liberação do braço H e o retorno à origem do braço M tem sua função: neste período o pêndulo escravo completa toda sua vibração para direita e retorna ao seu ponto zero em tempo para o chamado ‘ato de comparação’. Neste ato é que se determina se o Relógio Escravo precisará ou não de correção para se igualar ao Relógio Mestre.
Se o Relógio Escravo estiver muito atrasado, a mola Z fixada ao seu pêndulo tocará e será flexionada pela armação móvel V da peça de “acerto ou erro”, acelerando a vibração do pêndulo escravo. Se o relógio estiver adiantado, a armação V não conseguirá acertar a mola Z e nada acontecerá.
Difícil de entender? Tente acompanhar o funcionamento do relógio por esta animação, gentilmente cedida por J. E. Bosschieter e também disponível em seu muito informativo site.
Conclusão
A precisão do Shortt-Synchronome é tão espetacular, que graças a ela os cientistas puderam observar pela primeira vez que a Terra possui um movimento de rotação irregular, ou seja, é o primeiro regulador mais preciso que o próprio planeta!
Em pouco tempo após sua disseminação, melhorias no desenho do Shortt-Synchronome levaram ao aumento de sua precisão para um milésimo de segundo ao dia, lançando poeira em quaisquer outros relógios reguladores mecânicos jamais fabricados.
Sua produção durou até 1951, quando os reguladores quartzo já dominavam os observatórios mais avançados do mundo ocidental.
P.S.: Ficaram insatisfeitos com a resposta? Não consideram o Shortt-Synchronome como relógio mecânico só porque utiliza eletricidade?
Bem, o relógio puramente mecânico mais preciso já construído é o W5, feito por Philip Woodward e descrito pelo próprio em seu livro My Own Right Time, mas este fica para outro artigo...
Bibliografia
Bosschieter, J. E. 2000. A history of the evolution of electric clocks. Electric Clocks - A History Through Animation. [Online] 2000. [Citado em: 14 de Fevereiro de 2009.] http://www.electric-clocks.nl/clocks/en/index.htm.
Harvard University. Shortt free-pendulum regulator, master clock no. 17. Harvadr University - Department of History of Science. [Online] [Citado em: 14 de Fevereiro de 2009.] http://dssmhi1.fas.harvard.edu/emuseumdev/code/emuseum.asp?style=text¤trecord=1&page=seealso&profile=objects&searchdesc=Related%20to%20William%20Hamilton...&searchstring=seealsoid/,/is/,/1807/,/false/,/true&sessionid=9300D8A6-3F79-43C9-9840-B8FDBCC8.
Roberts, Derek. 2003. Precision pendulum clocks: the quest for accurate timekeeping. Londres : Schiffer Publishing Ltd., 2003.
Shortt, Willian Hamilton. 1921. Improvements in the synchronisation of clocks. 187.814 Grã Bretanha, 21 de Setembro de 1921. Sincronização.
Smithsonian Institution. The Quartz Watch: Timeline (1927). Lemelson Center Invention Features: Quartz Watch. [Online] [Citado em: 14 de Fevereiro de 2009.] http://invention.smithsonian.org/centerpieces/quartz/timeline/marrison.html.
Um comentário:
Postar um comentário