sábado, 24 de janeiro de 2009

George Daniels, MBE – Parte 5

Vendendo o escapamento co-axial

     A solução para o problema não demorou a chegar: se a vantagem do Double-Wheel Escapement é, como o próprio nome nos remete, a presença das duas rodas de escape independentes, por que não colocá-las uma em cima da outra? Assim se economizaria um bom espaço na platina.
     Em poucas semanas Daniels já tinha o protótipo do escapamento funcionando, o qual ele denominou “co-axial” em razão de ambas as rodas de escape dividirem o mesmo eixo.

     Os testes de bancada, que duraram aproximadamente dois anos, demonstraram que o novo invento funcionava tão bem quanto o escapamento anterior, com a vantagem de só precisar de um trem de rodagem e ser mais robusto. Como o co-axial também não exige lubrificação, a marcha não se altera com o passar do tempo e não há qualquer necessidade de manutenção.

     Em 1976, com o escapamento co-axial inteiramente desenvolvido e testado, George Daniels saiu em busca de alguém que pudesse produzi-lo em massa, a fim de divulgar seu invento e, quem sabe, inscrever seu nome nos anais da relojoaria. O destino óbvio seria os suíços, já que no Reino Unido há muitas décadas não se fabricavam relógios.
     O momento não era dos mais propícios. Com o surgimento dos relógios de pulso a quartzo, e sua popularização pela mão dos japoneses, a indústria relojoeira suíça estava em franca decadência. Muitas empresas fecharam e milhares ficaram desempregados. Quem sobrevivera, ou produzia relógios a quartzo ou não tinha o menor interesse em investir muito dinheiro no desenvolvimento de novos produtos mecânicos.
     A primeira empresa procurada por Daniels foi a Longines, pela qual possuía enorme admiração. Mesmo tendo sido recomendado por seu distribuidor da Suécia, que por sinal também era diretor da Escola Sueca de Relojoaria, a Longines recusou-se a recebê-lo.
     Daniels então procurou a Portescap, uma fabricante de escapamentos. Os técnicos da empresa limitaram-se a discursar sobre uma nova espécie de escapamento de âncora que estavam desenvolvendo e não o ouviram.
     Procurou então a FAR (Les Fabriques d’Assortiments Reunies), que naquela ocasião era a maior fabricante de escapamentos da Suíça. Seu diretor compreendeu os princípios do novo invento e gostou muito do que viu, porém alegou que o tamanho do escapamento seria um problema.
     Daniels não se deu por vencido: voltou para Londres e algumas semanas depois retornou ao tal diretor com um Omega Speedmaster adaptado com o escapamento co-axial.Calibre Omega 1045 com escapamento Co-Axial O diretor, não muito surpreso, disse que num relógio daquele tamanho[1] seria fácil, mas num movimento de espessura normal o escapamento não serviria. Quando Daniels explicou que o tamanho do escapamento não seria um problema para uma empresa tão acostumada a lidar com miniaturizações como a FAR, o diretor se dispôs a prosseguir com o projeto, desde que Daniels encomendasse meio milhão de unidades...

     Em 1979, Daniels foi procurado por um representante inglês da Patek Philippe. Após o envio de alguns desenhos, o chefe do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento (P & D) da marca visitou a oficina de Daniels e ficou acertado que a empresa iria produzir um protótipo de bolso para avaliação.
     O início da relação já não foi fácil: Daniels, no alto da sua impaciência e turra, ficou ofendido pela Patek Philippe querer produzir por conta própria um protótipo, sem sua supervisão. A partir daí, a troca de correspondências entre as partes sempre se deu num tom antagônico.
     Um pouco mais de um ano depois do início das conversas, o protótipo finalmente estava pronto, porém com funcionamento errante, parando sem motivo aparente. Daniels observou por um momento os desenhos e apontou onde estava o erro – atitude que não foi muito bem recebida pelos técnicos suíços.  
     Irritado, Daniels propôs abandonar o protótipo de bolso e pular direto para o de pulso.Calibre PP 315 O chefe do projeto, com ar vitorioso, lhe entregou um ébauche do calibre PP 315, com meros 2,5 mm de altura. 
     Daniels engoliu seco. Naquele momento pensou que seu escapamento co-axial jamais caberia num movimento dessa espessura, e se perguntou: “Se ele [o escapamento] não serve nos relógios modernos, qual seria o propósito de continuar a jornada?”. Derrotado, retornou à Londres com o ébauche e colocou-o de lado em sua bancada, na esperança de talvez um dia chegar a uma resposta.
     Daniels conta que, duas semanas depois, experimentou “aquela sensação de elação e relaxamento que precede a chegada de uma solução”. Esta consistiu no redesenho de todo o escapamento: a diminuição do número de dentes nas rodas de escape e a retirada do seu pinhão. A roda de escape superior foi modificada para atuar como pinhão e escapamento simultaneamente. Com isto, o escapamento co-axial ficou menor e muito mais fino, cabendo assim, teoricamente, no pouco espaço disponível no ébauche fornecido pela Patek Philippe. Escapamento Slim Co-Axial. Clique para vê-lo em funcionamento      Na prática, porém, a solução foi muito mais difícil. Daniels teve de comprar novas máquinas e trabalhar em dimensões e tolerâncias que jamais havia experimentado antes. No final de três semanas, o protótipo, denominado “slim co-axial”, estava funcionando no fino ébauche. Close do calibre PP 315 com escapamento Slim Co-Axial
     Os técnicos da Patek Philippe ficaram maravilhados com a engenhosidade do Mestre inglês e concordaram em produzir mais três protótipos baseados no novo desenho, para testes internos. Para descontentamento de Daniels, novamente os protótipos seriam produzidos sem sua supervisão.
     O intercâmbio de idéias entre as partes outra vez seria muito difícil. Os técnicos da empresa sugeriram algumas modificações, mas Daniels insistia para que se ativessem ao seu desenho – apelo este ignorado.
     Em 1984, um dos protótipos parou de funcionar e foi enviado para um especialista em escapamentos. O laudo resultante apontou graves falhas no desenho do projeto, especialmente naqueles pontos modificados pela Patek Philippe. Daniels respondeu que nenhuma das falhas estaria presente em seu design original – aliás, o protótipo original do slim co-axial, fabricado e adaptado naquele ébauche PP 315 pelo próprio Daniels, funcionaria incessantemente, sem qualquer manutenção, por 12 anos, parando apenas porque deu defeito no mecanismo de carga automática.
     Após este episódio, as partes se reuniram uma última vez, quando o chefe do P & D da Patek Philippe finalmente decretou que a empresa não seria capaz de produzir o escapamento, dando os três protótipos produzidos para Daniels.
     Foi o fim de quatro anos de um duro relacionamento.

     No ano seguinte, 1985, George Daniels foi procurado pela Rolex, dizendo-se interessada no escapamento.Calibre Rolex 3135 com escapamento Slim Co-Axial Daniels mostrou-lhes os protótipos, alguns desenhos, anotações e cálculos. A empresa questionou se haveria a possibilidade de ficar algum tempo com um dos protótipos, apenas para testes. Daniels lhes entregou o velho Omega Speedmaster (pois naquele momento ele próprio estava conduzindo experimentos com seu protótipo slim co-axial no Patek Philippe), porém avisando-lhes que se tratava de um design antigo e não muito eficiente, pois a amplitude do balanço era muito baixa, mas que serviria para demonstrar os princípios do escapamento.
     Algum tempo depois, Daniels recebeu um relatório da Rolex apontando exatamente que a amplitude era muito baixa, mas que o relógio possuía um bom desempenho. Ele respondeu que já havia dito isso, e que, se o desempenho era bom, por que reclamavam? A empresa limitou-se a dizer que escapamentos convencionais possuíam maior amplitude.
     Os técnicos da Rolex falhavam em enxergar que não estavam analisando um escapamento convencional, e que por isso os resultados não seriam estritamente iguais.
     Prevendo outra relação difícil, Daniels desistiu de tentar convencer o P & D da Rolex a adotar seu invento, limitando-se a responder apenas o que era perguntado. Logo a empresa perdeu o interesse no assunto.

     Daniels acreditava que jamais conseguiria convencer os suíços do valor do seu escapamento, acusando-os de fazerem pouco do engenho por não ter sido inventado por eles, mas ainda assim persistiu em apresentar o co-axial ao mundo.
     Aproveitando um oportuno convite do relojoeiro Svend Andersen para que expusesse seus relógios no estande de um recém-formado grupo de relojoeiros independentes (AHCI) na Feira da Basiléia, Daniels levou seus protótipos, chamando bastante atenção de entusiastas e da própria indústria.
     Por anos a fio, George Daniels carregou por todos os lugares aonde ia – exposições, palestras, aulas, seminários, encontros, entrevistas, etc. – uma maleta contendo relógios de diversos tipos, tamanhos, complicações e marcas[2]; todos contendo versões do seu escapamento co-axial.
     Numa dessas exposições, realizada no Museu Internacional do Relógio (MIH, na sigla em francês), em La Chaux-de-Fonds, Daniels conheceu um jovem relojoeiro, chamado Kilian Eisenegger, que ficou impressionado com seu escapamento.
     Kilian, que então trabalhava na ETA (ironicamente, dona da FAR, que já havia sido visitada por Daniels antes), com muito esforço conseguiu convencer seus superiores a darem atenção para o já não tão jovem invento, com a condição de que, se o escapamento fosse aprovado, a empresa teria direitos exclusivos sobre sua produção.Escapamento Slim Co-Axial por Omega
     Aprovados os termos do acordo, que incluía a prerrogativa de George Daniels sobre seus desenhos e o comprometimento da ETA em entregar 50 dos primeiros ébauches fabricados a Daniels, um contrato foi assinado na Feira da Basiléia em 1994. Finalmente, depois de quase 20 anos de luta, George Daniels conseguira conquistar os suíços!

     A relação entre a ETA e Daniels no início não foi das melhores, em grande parte pelo gênio difícil do Mestre inglês – ele era incapaz de compreender o porquê dos suíços quererem conduzir testes internos, quando seus próprios relógios já demonstravam as qualidades do escapamento co-axial. Porém os técnicos da empresa tinham melhor sensibilidade do que os técnicos passados, sempre elogiando e ouvindo os conselhos de Daniels, o que o agradava na medida.
     Depois de 26 meses de desenhos, cálculos e modificações – e, tenham certeza, muita reclamação por parte de Daniels – além de mais de dois anos de testes com protótipos, finalmente o escapamento co-axial, em sua versão slim, estava pronto para produção em massa, sob o jugo da marca Omega, que o introduziria no mercado.
     A estréia do novo escapamento se deu na Feira da Basiléia de 1999. O relógio escolhido para carregar essa honra seria uma edição limitada em 2.500 unidades do Omega DeVille, certificado como cronômetro, caixa em ouro 18 kl, e aparência muito similar ao famoso Omega Constellation Pie-Pan.Omega DeVille equipado com o calibre 2500
     O lançamento foi coberto por todos os veículos de mídia especializados do mundo, tornando conhecido por todo o planeta o escapamento co-axial, bem como seu genial inventor. Enfim, George Daniels conhecera a glória!


[1] O relógio adaptado foi um Omega Speedmaster Mark IV, equipado com o calibre 1045, baseado no calibre Lemania 5100. Para a época, era um relógio de grandes dimensões. O calibre 1045 possui 31 mm de diâmetro e 8,2 mm de altura.

[2] Exemplos de relógios que Daniels carregava: Omega Speedmaster Mark IV, equipado com o calibre Omega 1045; Patek Philippe Nautilus, equipado com o calibre PP 315; Rolex Datejust, equipado com o calibre Rolex 3135; Urban Jurgensen, equipado com calibre Zenith El Primero com tri-calendário 3019PHE; Daniels London de pulso, calibre próprio com cronógrafo e turbilhão de quatro minutos; Daniels London reverso de pulso, calibre próprio com horas numa face e, na outra, data e dia da semana, além da janela para visualização do turbilhão de um minuto.

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Um comentário:

Wilson A Filho disse...

Excelente biografia profissional de George Daniels. Parabéns e obrigado por compartilharem o conhecimento.