sábado, 24 de janeiro de 2009

George Daniels, MBE – Parte 3

Construindo o primeiro relógio

     No início de 1968 – no auge da obsessão de Daniels por Breguet – seu sogro, um grande colecionador de relógios da marca, lhe questionou por quanto sairia nos tempos atuais um relógio fabricado tal qual os do Grande Mestre. Daniels respondeu que não sabia, afinal ninguém mais fazia este tipo de trabalho manual. Foi então que lhe surgiu a idéia: por que não fazer seus próprios relógios? Daniels já havia fabricado todo tipo de peça para os relógios que restaurara, e havia aprendido com eles quase todos os macetes da manufatura relojoeira – coisas como a espessura ideal de uma roda, a força para uma mola, entre outros detalhes. Então, começou a fazer os desenhos para seu próprio relógio de bolso.
     Daniels tinha alguns objetivos em mente: primeiro de tudo, seu relógio deveria ser inteiramente construído por ele, manualmente, e isto incluiria mostrador, ponteiros, platinas, rodas, gemas e parafusos; segundo, não poderia ser igual a qualquer outro relógio já construído, pois como uma obra de arte, deveria refletir a genialidade do autor na sua concepção, construção e integridade; terceiro, seu desenho deveria ser puro e simples, a fim de ressaltar a sua praticidade e facilidade de manutenção.
     Definida a proposta do relógio, Daniels escolheu para começar um relógio de horas simples, isto é, com três ponteiros: hora, minuto e segundos, mostrador em guilhochê e caixa redonda de ouro. Para dar uma diferenciada, o ponteiro de horas teria mudança instantânea[1] e seria retrógrado. Além disso, a corda do relógio seria dada com o uso de uma chave independente, pois Daniels não gostava de coroas em relógios de bolso – “poluem o visual, distraindo o expectador do mostrador” diz.
     A fim de cativar os verdadeiros connoisseurs, além de prestar uma homenagem ao seu ídolo Breguet, o movimento contaria com um turbilhão. Para obter o máximo de precisão, o escapamento seria um pivoted detent. Pela parte visível do movimento, seguindo seu princípio da simplicidade, só ficaria a mostra os dois imensos tambores de corda e a gaiola do turbilhão, pois toda a rodagem estaria do lado do mostrador. A decoração seria no melhor estilo inglês, com o dourado predominando, acabamento gilt frosted, black polish, parafusos azuis e gravações feitas à mão.

     Tudo preparado, Daniels comprou todo o ferramental necessário e pôs-se a trabalhar em sua obra solo. Logo no início, a prática lhe mostrou que era inútil tentar projetar antes o relógio no papel e depois seguir os esboços, pois vira e mexe ele modificava ou acrescentava alguma coisa na peça que estava torneando, e refazer os desenhos só lhe dava mais trabalho; então ele ia fazendo as partes de acordo com sua cabeça e só com o movimento pronto é que o desenhava, para futuras referências.
     Daniels não possuía ainda a maestria de muitas das habilidades necessárias para se fazer um relógio por completo, assim, dedicou-se ao treino: por exemplo, passou noites a fio testando técnicas de guilhochê num rose engine[2] que lhe foi doado por um amigo, aprendendo solitariamente a dominar esta arte necessária para seus mostradores e caixas.
     Finalizado o movimento e o mostrador, Daniels precisava agora de uma caixa para seu relógio. Contatou um conhecido caixeiro de Londres, acertou os detalhes e deixou todo o material lá. Semanas depois, sem nenhum contato do tal caixeiro, Daniels passou na oficina dele e viu que tudo o que foi deixado sequer havia sido tocado, bem como muitos outros projetos que estavam lá na visita anterior. Vendo que o caixeiro dificilmente iniciaria, e quanto mais acabaria sua caixa num mínimo de rapidez, Daniels não teve dúvida e lhe propôs um acordo: que este o ensinasse a fazer uma caixa e ele pagaria o mesmo tanto que lhe seria cobrado se o próprio caixeiro a fizesse. Fechado o acordo, a caixa ficou pronta em uma semana, literalmente melhor do que a encomenda.
     Após 22 semanas de trabalho árduo, a caixa foi chancelada com as iniciais de seu criador “G.D.”, e o primeiro relógio “Daniels London” estava pronto!

Primeiro Daniels London

     Obviamente, como é fácil de presumir, o privilégio de possuir a primeira grande obra de George Daniels não poderia ser de ninguém menos do que seu melhor amigo e grande patrono, Cecil Clutton, que mais para frente escreveria:

“Por meio dos carros antigos conheci George Daniels antes de sua meteórica estréia no ramo da relojoaria antiga. Suas restaurações virtuosas logo o fizeram merecer uma reputação mundial incomparável. Então um dia ele anunciou para mim que começaria a fazer relógios e que eu seria o possuidor do primeiro fruto de seus esforços. Eu achei isto profundamente lisonjeiro e um pouco alarmante já que tal relógio obviamente deveria ser muito caro e eu não sabia se poderia bancá-lo. Porém, não era hora de argumentar.

Meu relógio possui um escapamento pivoted detent; incrivelmente elegante e brilhante em ação, sua energia é fornecida por dois tambores de corda. A roda do balanço é integral e de aço, ligada a uma mola espiral de paládio com overcoil, e possui um piton ajustável para isocronismo. É um arranjo que produz excelente precisão, quaisquer sejam os padrões adotados.

O incomum mostrador prateado em guilhochê é de tremenda elegância, com um ponteiro central de minutos que percorre toda a circunferência do mostrador e um de horas num setor diferente, percorrendo apenas um arco, e movendo-se apenas na virada da hora. Alcançado o fim do arco, o ponteiro de horas retorna instantaneamente ao início do setor.

Outra característica do meu relógio não encontrada em qualquer outro Daniels é a caixa de ouro e prata. A lateral é de ouro, com aros de prata, e o fundo também é em prata. A caixa inteira é finamente guilhocheada.

Exceto por peças de conclusão de curso feitas por aprendizes, é provável que há mais de quatrocentos anos ninguém tenha feito um relógio inteiro sozinho. Em meu relógio Daniels teve de fazer tudo por si só, até os parafusos. As únicas coisas que ele não fez ou executou sozinho foi a mola do balanço, a mola da corda e as gravações no mostrador e movimento.

Para fazer isto ele teve de aprender todas as artes que normalmente só seriam praticadas por diversos profissionais especialistas diferentes; entre elas a de caixeiro e guilhochê. Ele jamais havia feito uma caixa para relógios antes. Foi uma tarefa que pela sua magnitude intimidaria qualquer um, não importando seu currículo passado. Não existe, talvez, qualquer pessoa viva que poderia tê-la completado com o brilhantismo de George Daniels.

Que um homem tenha a habilidade intelectual para desenhar tal mecanismo; a habilidade técnica para executá-lo com uma exatidão sem paralelo entre os mestres do passado (excetuando-se talvez Louis Berthoud); e a habilidade artística para dotá-lo com um formidavelmente elegante aspecto; parece ser uma incrível união de talento e perseverança.

Eu me considero muito honrado por possuir este relógio histórico. Ele foi terminado e chancelado em 1969 com, claro, a marca de seu fabricante: GD.”

     A partir de então, Daniels abandonaria para sempre a manutenção e restauração de relógios de terceiros, dedicando-se em tempo integral aos seus relógios.


[1] O que conhecemos hoje em dia como jumping hours.

[2] Torno específico para a criação de desenhos com esta técnica. Não possui nome em português.

George Daniels, MBE - Introdução
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